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105. escrever um diário da minha gravidez

__ 08/01: A camisinha estourou. Não tem problema, o app Clue diz que eu não estou no período fértil.

 

 

__ 24/01: Menstruação seis dias atrasada, comprei um teste de gravidez e um litro de suco doce demais de um mix de manga, laranja e pêssego. O teste deu positivo, fiquei anestesiada, pensando em tudo que viria pela frente.

Em nenhum momento antes de descobrir que estava grávida eu tive vontade de ser mãe, nem depois. Acho estranho até ter que justificar isso, pelo simples fato de que não faço ideia de como que seria sentir o contrário disso. Para mim é como ter que justificar que nunca senti vontade de construir um criadouro de tamanduás-mirins no Nepal. Sim, tamanduás-mirim são fofíssimos! Sinto só amor por tamanduás-mirim. O Nepal parece ser um lugar lindo. Se você quiser ir criar tamanduás-mirim no Nepal, meus parabéns, acho que você vai ser super feliz mesmo. Mas, entre todas as coisas que quero fazer na vida, essa não é uma delas. Nem ser mãe.

 

Sim, sei que procriar e assegurar que a nossa espécie continue por aí é basicamente o propósito de qualquer existência. Mas grande coisa, a gente perverteu tanto a vida humana que quase tudo que fazemos não tem nada a ver com nosso propósito animal natural. Além do mais, a humanidade está superpopulando o planeta, talvez exista uma adaptação natural que resulte em um número cada vez maior de pessoas que não querem ter filhos.

 

Eu já sabia que aborto era legalizado na Alemanha, o que me deixou mais tranquila. Porém não tinha ideia do processo todo. Liguei pro ‘pai do bebê’, que é alemão, e ele também não sabia bem o que fazer, além de não estar em Berlim. Depois de algumas traduções e algumas ligações para amigos, descobrimos que o melhor seria ir o mais rápido possível a um ginecologista, e ver se ele poderia me prescrever o remédio abortivo. O mais rápido possível era na manhã seguinte. Passei o resto do dia contando pros meus amigos que estava grávida, pesquisando vídeos sobre o desenvolvimento de bebês (o meu estava com 16 dias, o que são, na contagem de gravidez, 5 semanas.. ?!) também aproveitei para fazer montagens em sites que mostram como seria a cara do meu bebê. Ele teria uma cara de esnobe. Durante todo esse processo jamais realmente passou pela minha mente a possibilidade de ter esse filho. Apesar disso, queria aproveitar minha gravidez. A surrealidade de poder usar a frase “estou grávida” era muito tentadora, e eu usei mesmo, o quanto pude. Provavelmente esse tenha sido o único momento na minha vida em que poderia dizer isso.

 

Pesquisei um pouco sobre chás abortivos, não custava tentar. Entrei no grupo Ginecologia Natural do facebook, que é um lugar seguro para mulheres compartilharem suas experiências trocarem conselhos e dicas. O grupo tem 15.321 membros, e para minha surpresa, não encontrei posts claros sobre o assunto. As mulheres usavam eufemismos – “dicas para a menstruação descer” – em vez de usar a palavra aborto. Foi aí que me dei conta que temos muito o que conversar sobre esse assunto, porque além de ser ilegal no Brasil, ele também é um imenso tabu e gera censura até entre as mulheres.

 

  

__ 25/01: A ginecologista me examinou e mostrou um ultrassom do bebê, que nesse momento era um embolado de células sem o menor formato de bebê. Quando contei que queria abortar, ela disse que era anti-aborto e que teria que me passar para um seus colegas. E que antes de poder fazer o procedimento, eu precisaria fazer pelo menos uma sessão de aconselhamento familiar.

 

Me dirigi ao lugar do aconselhamento familiar, durante o caminho não parava de pensar que todo esse aconselhamento deveria ser dado para pessoas que decidem ter bebês, e não para as que decidem não ter. Fiquei pensando sobre como a decisão de mudar para sempre o foco da sua vida, de colocar um outro ser humano no mundo e se responsabilizar por nutrir essa pessoa de comida, afeto e tudo o mais por muitos anos, essa sim é uma decisão que precisa ser tomada com cuidado, que precisa de acompanhamento psicológico. E não a decisão de simplesmente continuar a sua vida do exato jeito que já estava.

 

Mas para entender o que estava acontecendo, pensei no famoso dilema do bonde. Esse dilema funciona assim: existe um bonde descontrolado indo em direção a 5 pessoas amarradas nos trilhos. Se você não fizer nada, as cinco pessoas irão morrer, mas você tem a opção de puxar uma alavanca e desviar o bonde para um outro trilho, onde só existe uma pessoa amarrada, e portanto, só uma pessoa vai morrer. Você puxaria a alavanca? A maioria das pessoas diz que sim.

 

 E se, no lugar de uma alavanca, você tivesse a opção de empurrar um homem para cima do bonde, desviando o bonde com o corpo do próprio homem, que morreria.

 

O que acontece é que racionalmente é muito claro que preferimos que uma pessoa morra, e não cinco pessoas. Mas na hora de agir, a ideia de colocar as mãos em alguém e empurrar essa pessoa para a sua morte, nos parece muito terrível. E por isso, muitas pessoas dizem preferir não fazer nada e simplesmente “deixar” que o bonde mate as cinco pessoas.

 

E me parece ser por isso também que quando grávidas, muitas pessoas não fazerem nada e só deixam a vida seguir naturalmente.  Interromper a gravidez exige esforço, e um esforço em direção a matar um ser humano que está sendo construído dentro de você, que é metade você (e provavelmente) metade uma pessoa de quem você gosta. Um esforço na direção de interromper esse processo tão deslumbrante.

Eu fiquei pensando sobre isso, sobre como era realmente linda e absurda essa realidade. Eu ficava repetindo em pensamento “tem um bebê sendo feito dentro de mim , tem um bebê crescendo dentro de mim”. Um ser humano que já tem um DNA próprio.  Estava abismada e sentia reverência por toda a natureza e seus métodos infalíveis.

 

Recebi a autorização para o aborto.

 

 

__ 26/01: Comecei a sentir muita fome, comia caramelo caseiro de colher totalmente sem limites. Também estava sentindo cólicas, era claro que um grande movimento estava acontecendo dentro de mim. E eu estava exausta. Sentia que o propósito de ser do meu corpo havia mudado. Meu corpo tinha se tornado uma fábrica.  Não apenas sobreviver, agora meu objetivo era ser imortal. Ter certeza de que meus genes iriam continuar depois da minha própria morte.

 

Nesse dia eu precisava ir até uma agência de seguro de saúde pegar um documento que me permitiria fazer o aborto de graça. Sem esse documento o procedimento me custaria  o equivalente a 1200 reais. Estava chovendo. Peguei um uber e graças a um bug no google, o motorista me levou pro outro lado da cidade, numa agência que estava em construção. Eu expliquei que tinha acontecido um erro no aplicativo e que local estava errado, mas o motorista não acreditou em mim. Em resposta ao seu total descaso eu comecei a chorar compulsivamente e dizer que ele estava sendo horrível e que não tinha coração. Provei para ele que eu estava certa e que o google havia errado. Ele foi indiferente a tudo. Eu estava nadando em um mar de flutuações hormonais.

Me recuperei como pude, e consegui a documentação.

 

 

__ 27/01: Já estava tudo marcado e arranjado. Nesse dia apenas cozinhei e comi maravilhas.

 

Torta de cogumelos selvagens, cebola caramelizada no azeite balsâmico, nozes e basicamente tudo que há de bom no universo.

 

 

__ 28/01:  Segundo a lei alemã, era preciso esperar 3 dias depois do aconselhamento familiar, para realizar o procedimento. Como eu estava no início da gravidez, não seria necessário um procedimento cirúrgico. Funcionaria em duas partes: primeiro eu tomaria uma pílula que interrompe a chegada de hormônios para o bebê, e ele pararia de se desenvolver. Dois dias depois eu tomaria o famoso Cytotec, que causaria contrações no meu útero e a expulsão do bebê e de tudo o mais que estiver por lá.

Fiquei pensando que esse seria o último dia em que um bebê estaria crescendo dentro de mim. Fiquei melancólica.

 

__ 29/01: Amanheceu só as 8 da manhã. Cheguei na clínica e tomei o remédio que pararia o fluxo de progesterona para o feto. Me senti aliviada. Foi menos conflituoso do que eu esperava.

 

__ 30/01: Me dei conta que estava dormindo de bruços.  Há mais de uma semana eu não estava conseguindo dormir de bruços por causa de desconfortos na barriga, também percebi que não estava mais com os peitos doloridos. O bebê já estava morto, acho. Todas as noites o ‘pai do bebê’ me ligava e conversávamos sobre o processo, foi importante.

 

Fui ao supermercado e comprei tudo para um dia de repouso e tranquilidade na clínica: sucos, absorventes noturnos, sorvetes. Chegando em casa fiz minha malinha com um lanche, analgésicos, óleo de CBD, kindle, celular e um caderninho de desenho. Estava tudo pronto, no dia seguinte iria  passar a manhã na clínica, provavelmente sentindo dor, e gostaria que o perrengue fosse o menor possível.

 

 

__ 31/01: Sem a menor explicação, um médico desconhecido – o terceiro a me atender até agora – me deu dois tabletes de Cytotec e disse para eu engolir e esperar em uma salinha. Era uma salinha surpreendentemente confortável. Tomei os tabletes, um Ibuprofeno 400g, duas gotas de óleo de CBD 3% e esperei. Mais ou menos meia hora depois, comecei a sentir cólicas intensas, fui ao banheiro, tive diarréia, calafrios, dor pelo corpo e vomitei no lixo do banheiro. Depois do vômito, as cólicas diminuíram e eu consegui voltar para o quarto. Esse momento de dor deve ter durado uns 5 minutos e foi muito violento. Tomei mais um Ibuprofeno, estava grogue e exausta e peguei no sono. Acordei com a enfermeira perguntando se estava tudo bem, eu estava dormindo há uns 40 minutos e não senti mais nenhum desconforto, então me dei conta que devia ter vomitado o Cytotec. O médico confirmou e me deu mais dois Cytotecs, dessa vez para inserir na vagina. Quando cheguei no banheiro para fazer a inserção, vi cair uma cachoeira de sangue e uma bola coagulada no vaso. Fiquei feliz. Mesmo assim inseri os dois novos Cytotecs. Apesar disso, nunca mais passei dor ou desconforto como naqueles primeiros minutos, mas sangrei como um fluxo intenso de menstruação e me senti cansada durante todo o dia.

 

O aborto em si foi mais simples e menos dolorido do que eu estava esperando, mas a função toda é muito desgastante emocionalmente e fisicamente.

 

 

 

__ 01/02: Continuei expelindo coágulos de sangue por mais 4 dias, o fluxo foi diminuindo progressivamente.

 

 

__ 23/02: Fui ao ginecologista para confirmar que tudo havia terminado bem. Estava tudo bem.

 

Não consigo deixar de lembrar da Interpretaçao dos Muitos Mundos, do Hugh Everett, e que esse aborto, como qualquer aborto, iniciou uma bifurcação no espaço-tempo, e em um universo paralelo aquele bebê existe e a minha vida inteira tomou rumos diferentes e inimagináveis. Me sinto grata por ter tido a possibilidade de escolher qual desses universos habitar.

5 Comentários

  1. Gabriela Abreu disse:

    Olá!Te agradeço pelo relato: abortar é em geral um ato solitário, acho importante poder compartilhar experiências. Sinto muito que no grupo Ginecologia Natural não tenhamos te dado retorno e concordo contigo que o aborto ainda é um tabu. Te desejo tudo de melhor e que não desistas de frequentar o grupo. Bj!

  2. Maria disse:

    Eu te admiro tanto. Obrigada por este blog.

  3. Vah disse:

    Excelente relato. Você escreve bem demais. Decisão difícil, me vi muito em suas palavras. Fico feliz que as coisas terminaram bem. <3

  4. Carla disse:

    Relato necessário: sóbrio e delicado ao mesmo tempo. Desmistifica muitas falsas concepções sobre a escolha e seus processos. Obrigada.

  5. Louise disse:

    Muito, muito obrigada por esse relato. Principalmente pelo final dele. Sem julgamento moral, o importante é que a escolha seja SUA de qual caminho seguir. Terminei de ler há uns cinco minutos e estou tocada até agora, pensando no que comentar aqui. Acho que no fim só queria agradecer pela sua coragem. Não apenas pela coragem de seguir em frente com o que você acredita, mas de compartilhar essa história. Isso é muito muito importante. Obrigada.

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